Eu e Cuba: Diário de Viagem II



Cuba é intrigante, mexe com o emocional, se impõe com seus mistérios, sorrisos de canto, um certo constrangimento e com seu pacote de necessidades.

Todo o orgulho de possuir está no simples, naquilo que para nós é prosaico. Não tem como não perceber que precisamos de bem menos do que almejamos. No aeroporto muitas pessoas chegam abraçadas em enormes embalagens de fraldas descartáveis, pois aqui nem sempre ter dinheiro significa poder. Não vimos fraldas e absorventes nos mercados privados, há algumas poucas embalagens de shampoo e cremes. No mercado privado junto ao Habana Libre há mais possibilidades, inclusive coca-cola de 2litros (não vi em outro lugar).

Há um constrangimento no ar, pois a necessidade impõe um comportamento menos reto. Culturalmente não aceitam o que chamamos de "jeitinho brasileiro", mas ele é o que há, em todas as relações.




Compramos selos na agência dos correios, que teriam nos custado pouco mais de um peso, saíram por quase seis. O táxi que custaria uns sessenta, saiu por oitenta. Há intermediários para tudo, da hospedagem aos deslocamentos. É regra, todos necessitam dos CUCs para sobreviver, pois o peso cubano vale quase nada e não serve para adquirir produtos nos ambientes privados.

Nas conversas com locais, a medida que se soltam, soltam o verbo. Ainda que constrangidos, contam o que muitos fazem para aumentar os rendimentos, como burlam regras ou trapaceiam. Cozinheiros que retiram do corte de carne pequenos filetes, desviando para o consumo da família ou para escambo no mercado paralelo. Como pessoas casam, descasam e casam novamente, como forma de burlar as restrições às transferências imobiliárias. Famílias com parentes no exterior que revendem toda sorte de enlatados, para gerar renda. Tantos exemplos narrados em voz baixa, como se o vento fosse um delator.

São tantas histórias, tanta necessidade, tantos desejos silenciados. Não há privação maior do que a da liberdade. Por aqui a revolução não é francesa, cerceia a voz e a liberdade. Agora, que está a se esfarelar permite, mas o permissivo não conduz, pois a miséria imobiliza.



Nas ruas o policiamento intimida, cubanos baixam os olhos. Não há igualdade, há um certo temor arraigado. Vimos um condutor ser multado, olhos baixos, mãos nervosas, nenhuma palavra.

Como controlar a população, mantê-los fieis ao regime? Para cada grupo de aproximadamente cinquenta casas há uma espécie de conselho popular - Comité de Defensa de la Revolución, que é responsável por cadastrar os moradores, saber das atividades profissionais e escolares de todos.


Nem todos se sentem presos, muitos são fiéis aos ideais revolucionários. As famílias mais pobres são a base da manutenção do regime, desde sempre. Embora permaneçam em situação de miserabilidade, hoje são alfabetizadas, os filhos acessam o ensino superior e recebem atendimento médico indistinto. Para essas, a liberdade de outrora só significou segregação, hoje são Cuba, fazem parte, tem nome. Logo, o conceito de liberdade é flexibilizado.




Há uma descrença no ar, por outro lado. Sem os investimentos soviéticos e com a diminuição das empresas mistas, o que conhecemos por classe média se encontra abandonada. Médicos, engenheiros e outros profissionais exercem quaisquer outras atividades, para sobreviver. Como costumo dizer, não há dor maior do que de amor traído. Muitos cubanos se sentem traídos pelos revolucionários de Sierra Maestra. Compraram a idéia, mais do que apoiar a revolução viveram para ela, acreditaram e agora choram o tempo perdido, as vidas silenciadas, os nãos recebidos. Como no sistema capitalista, há que ser amigo do Rei para bem viver.

Para nós, gaúchas maragatas, impossível conjugar a vida sem liberdade. Não concebemos um espirito revolucionário que cale os homens, que lhes tire o acesso a cultura ampla e que restrinja o pensamento. Tentar entender esse povo é ver nosso avesso, é achar diferenças nas misérias, algo que nos é tão comum.



Essa é, também, a terra do riso fácil, do ser feliz por nada. Programas simples e divertidos, como ir ao cinema ou andar pelas avenidas, beira-mar e praças durante a madrugada. Ver multidões num sábado à noite caminhando, cantando, dançando ou apenas conversando. Não há internet e tv a cabo, resta o outro, a conversa e a alegria.

Embora minha mala volte mais vazia, levo uma bagagem repleta de questionamentos, de exclamações e que me marcarão tanto quanto o odor do diesel que gruda na pele, nos cabelos e nas roupas. Para mim o cheiro de Cuba não é da brisa do mar, será sempre do óleo que esfumaça as ruas de Havana.

Tal qual os brasileiros os cubanos sorriem, batucam e cantam - um mesmo gingado, tantas semelhanças, só amostras da miséria latino-americana.



Foi maravilhoso, num momento especial. Vivemos intensamente cada um dos dias, cada conversa e cada silêncio, já que em alguns momentos são mais esclarecedores que tudo.



9 comentários

  1. Respostas
    1. É estranho publicar o que foi escrito como um diário intimo, apenas para não perder a essência do momento, os sentimentos que brotavam e saltavam pelos poros. Confesso, olhando o conjunto, gostei de tê-lo feito. Sem internet para distrair a escrita foi a rainha da viagem. BjO!!

      Excluir
  2. Lindo texto! "Não há privação maior que a da liberdade" Esta frase toca fundo no coração...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, querida. Resolvi publicar os trechos do meu diário após nossas conversas em Brasilia e estou curtindo vê-los ilustrados. BjO!

      Excluir
  3. Cuba mexeu mesmo consigo. Gostei muito dos dois capítulos deste diário. Espero por mais.
    Beijinhos, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    ResponderExcluir
  4. Seus textos sempre encantadores!
    Eles me fazem desejar ainda mais Cuba.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada. Já estou louca por sua viagem, desejo máximo de saber de suas vivências e opiniões. BjO!!

      Excluir
    2. E ai, se animou com a mega promoção para Havana??? Louca que vocês viagem para lá! =)

      Excluir

Para o Topo